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Caro, Bernardo!

  • Ked Maria
  • 28 de mai. de 2018
  • 4 min de leitura

Caro, Bernardo!

Hoje é domingo, faz sol, porém como todo dia de outono está frio na sombra e dentro de casa. Eu, sua tia, estou na casa do namorado de blusa de frio, indecisa se sinto calor ou se tomo um café para amenizar esse tédio, com uma pitada de trabalhos acumulados. Sentada no chão da sala, com os pés no sol, estou pensando em como você pode ser tão pequeno. Tenho algumas coisas para te contar, que talvez ninguém ouse tocar no assunto e esse momento será perdido. Um dia, quando ler essa carta, muita coisa terá mudado, porém você precisa saber do passado e do meu agora, para entender o seu presente e talvez isso influencie seu futuro, como espero.

Você veio ao mundo no dia 26 de abril de 2018, pesando 2,5 Kg, às quatro da tarde, no Hospital Santa Casa de Misericórdia, Belo Horizonte. Sua mãe tinha 16 anos e a única coisa que ecoava na minha mente era o choro dela ao fundo de um áudio que sua vó me enviou. O áudio dizia que, como acompanhante, ela não poderia descer na portaria para me entregar a chave da loja, o sustento de nossa família fechado para acompanhar o parto. Sua mãe chorava desconsoladamente, como se já não aguentasse mais, uma vez que, estava aguentando aquilo desde às 2 horas da madrugada daquela quinta feira.

Cheguei ao hospital com a intenção de segurar as pontas enquanto você dava um jeito de sair, saí de lá cercada de medos. Meus pensamentos vinham todas as matérias sobre violência obstétrica, afinal uma adolescente grávida não é algo bem visto perante a nossa sociedade. Não importa os motivos da gravidez, a mulher sempre carrega o peso da culpa com os dedos apontados e os xingamentos dos que acham juízes da vida alheia. Depois, lembrei como o parto ceifou vidas de milhares de mulheres. Como exemplo, veio lembranças da minha amiga de fundamental, Valesca, negra retinta, amável, sem mãe e sem desabafo por perder sua progenitora no raiar da vida.

Juntei com as pesquisas que mostram que mulheres negras recebem menos anestesia, que a maioria das mulheres da nossa família não tiveram passagem para o parto normal. Sua mãe, filha caçula, tão pequena, magra, os olhos fundos, odiadora declarada das verduras e legumes, adolescente, minha irmã mais nova, em um hospital público. Medo, medo de receber uma ligação, com tom de incredulidade dizendo que a parceria mãe e filho não deu certo, que a parceria faliu, ruiu, acabou, partiu tão fugaz quanto aquele áudio que desencadeou esse sentimento. Segurei as lágrimas dentro daquele ônibus cheio, que seguia viagem sem saber da minha angústia.

“Nasceu”

A mensagem chegou no celular coberto de suor, esperança, espera e apreensão. Sua foto foi espalhada por todas as contas de WhatsApp da família. Nasceu, o menino homem. A cara do pai, pequeno, branco, tímido, quieto, manso. Todos queriam saber como era ter você no colo, a fofura, observar o nariz e eu preocupada com a mulher que te colocou no mundo. Não entenda mal, sua mãe estava esgotada, sua avó estafada e você chegou montado em privilégios. Talvez não perceba essas vantagens, pois elas aparecem de formas sutis, porém elas facilitam muito a sua vida.

A você é permitido sonhar, queria ser médico, engenheiro, rico, inteligente, versátil. As portas estarão abertas, o seu poder de desejar e de exercer suas vontades serão garantidos. Na rua o pior dos medos será o assalto, nunca o estupro. O mundo estará aos seus pés. Com um piscar de olhos poderá deslegitimar qualquer fala de uma mulher. Terá a escolha de não ter filhos e se os tiver poderá deixá-los. Isso é concedido com alguns adendos: Não queria ser artista e não ouse brincar com signos da feminilidade, seja viril e o macho alfa.

Esses ensinamentos serão passados enquanto te banham com um manto azul da masculinidade, será treinado pra vê como é a evolução da espécie, forte, superior e entendedor de todas as coisas. Você não poderá questionar e uma recusa desses valores as pessoas vão massacrar cada centímetro de personalidade.

Sinto informar que as pessoas sempre foram ruins, falta empatia nas palavras e nas ações. Então, quando a adolescência bater na porta, não se afaste dos momentos ruins, aprenda com eles. Acredite são eles que nos moldam, rapaz. Os que dizem ter uma infância feliz eram ricos e/ou caçoadores. A primeira alternativa foi descartada na concepção, a segunda pode determinar seu caráter quando adulto. Não provoque a dor do outro por satisfação, é isso que diferencia os monstros da humanidade.

Ame. Ame muito. Ame-se. Nunca deixe que o amor seja dor, nunca deixe que te desmereça ser amado. Sinta o amor antes de qualquer coisa, seja primeiro, ainda de se aventurar. Apaixone-se, e brigue por isso, defenda seu direito de amar. Vista a pele do outro antes de jogar farpas, mas nunca se esqueça da sua casca. Quando estiver pesado demais, descanse, respire, transforme, reinvente, vire de pernas pro ar, sempre haverá solução.

O mundo anda muito pesado no agora, aí no futuro talvez as coisas tenham melhorado. Por fim, quero que sabia, todas às vezes que a máscara, da verdade única, te tapar os olhos, sua tia aqui irá tirar-lhe a cegueira, para que você tenha opção, e não tire a opção de ninguém, de nenhuma mulher.

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